Neste sábado, dia 13 de maio, a Lei Áurea, de abolição da escravatura, completa 135 anos. Para entender melhor sobre o contexto envolvendo a data, a Rádio Virtual FM conversou com o historiador André Fabricio Ribeiro, que é licenciado em História e mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul. Ele integra o Movimento Étnico-cultural dos Negros de Erechim (MENE).
Confira a entrevista na íntegra:
Rádio Virtual FM: Tradicionalmente, o Dia 13 de maio é conhecido como Dia da Abolição da Escravatura. O que ocorreu especificamente nessa data?
André Ribeiro: De fato, em 13 de maio de 1888 foi o dia em que a princesa Isabel, regente do império do Brasil, aboliu a escravatura. Isso ocorreu após cerca de 350 anos em que a economia do país foi sustentada pelo trabalho escravo. Cerca de 4 milhões de africanos foram sequestrados em seus países de origem e trazidos para o Brasil. Aqui trabalharam na produção de açúcar, nas plantações de algodão, nas minas de ouro e diamantes, na criação do gado, na produção do charque, nas plantações de café , em serviços domésticos nas fazendas e nas cidades. Além dos trabalhos forçados, foram submetidos a toda espécie de violência física e psicológica.
O que é importante entender dentro do contexto em que se deu a assinatura da Lei Áurea?
André Ribeiro: É importante entendermos acima de tudo que a abolição da escravatura não se deu por um ato isolado por parte da Princesa Isabel de Bragança. Ao longo da história, criou-se uma aura de benevolência em torno da figura da princesa. Ela foi uma personagem histórica que teve seu papel de relevância. Entretanto precisamos lembrar que o ato da abolição foi o resultado da luta da população escravizada desde o período colonial através dos quilombos e mais tarde pelo crescimento dos movimentos abolicionistas que foi se fortalecendo ao longo dos anos.
Durante o século XIX, quando o mundo entrava em novos padrões civilizacionais, o país foi atingido por esta onda. O avanço das ideias liberais que ganharam força após a Revolução Francesa, a luta pela liberdade e pelos direitos do homem, vieram a reforçar a luta contra a escravidão. Outros eventos mundiais contribuíram para este desfecho:
Em 1804 uma revolta de escravos no Haiti levou aquele país à sua independência.
Em 1833 a Inglaterra aboliu a escravidão de suas colônias e passou a pressionar os demais países a que fizessem o mesmo, visto que a ênfase era o trabalho livre e assalariado que fomentaria o crescimento de populações com poder de consumo.
Nos países da América Espanhola, a escravidão foi abolida entre 1820 e 1850.
Nos Estados Unidos da América, a abolição foi realizada em 1865 após a sangrenta Guerra de Secessão.
A evidência de que o sistema escravista não podia ser sustentado por mais tempo no Brasil, foram as leis que gradativamente avançavam na direção da abolição. Em 1871 foi criada a Lei do Ventre Livre que determinava que todo filho de escravo nascido após aquele ano seria considerado livre a partir dos 8 anos de idade.
Em 1885, foi criada a Lei dos Sexagenários, que concedia alforria aos escravos que possuíssem idade superior a 60 anos. Os escravos alforriados ficavam obrigados por lei a prestar “serviços indenizatórios” durante três anos.
A década de 1880 foi marcada por inúmeros casos de fugas em massa dos escravos das fazendas levando os fazendeiros a grandes perdas financeiras.
Não podemos esquecer também que em fins do século XIX a Europa tinha uma grande parcela populacional em condição de miséria, que ficou à margem da revolução industrial e que começava a migrar em número cada vez maior para as Américas. Mais tarde, já sob a república, esta imigração foi ampliada no Brasil através de programas de estado que visavam atrair estes imigrantes como mão de obra. Estes eventos acabaram contribuindo para o fim do sistema escravagista.
Por que cada vez mais emerge a abordagem sobre não ser uma ‘data comemorativa’?
André Ribeiro: Desde a década de 1970, o trabalho de pesquisadores, historiadores e militantes do movimento negro, tem trazido à luz o protagonismo das negras e negros que lutaram contra a escravidão. Em 1971, em Porto Alegre os jovens Antônio Carlos Côrtes, Oliveira Silveira, Vilmar Nunes e Ilmo da Silva, fundadores do grupo Palmares, não concordavam com a data de 13 de Maio e propunham que 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, deveria ser a data simbólica de comemoração e reconhecimento pela luta dos negros e negras pela plena liberdade. A partir daí a data ganhou força no meio da militância e levando à reflexão de que o 13 de maio foi apenas o fim de um sistema de escravidão, entretanto relegou os ex-escravizados a uma condição de miserabilidade e abandono por parte do estado. Sem acesso à educação e ao trabalho aquelas pessoas foram deixadas à margem da sociedade.
Que abordagem, então, seria a mais adequada para essa data quando se pensa em história e diante dos desafios que ainda hoje - 135 anos depois, - são latentes?
André Ribeiro: Acredito que é importante ressaltar o protagonismo do povo preto ao longo da história. Ainda que muitas gerações tenham sido escravizadas e morrido sob a escravidão, a história das lutas, da resistência e dignidade de um povo deve sempre ser lembrada. Entender e ensinar as nossas crianças e jovens que a escravidão ao longo dos diferentes períodos históricos foi um sistema perverso e inaceitável sob qualquer ótica e que, infelizmente, gera desdobramentos até o presente.
A população preta e parda no Brasil, continua em sua maioria excluída de direitos mais básicos como educação e trabalho, é vítima de violências que atentam contra a sua vida e sua saúde. Este conhecimento nos dá elementos para pressionar o estado e a sociedade brasileira para que na atualidade possam combater a herança perversa da escravidão.
O racismo ainda é um desfio bastante presente. Por muito tempo o racismo foi suavizado em nossa cultura e isso se reflete em frases como:
“ negro de alma branca”, “ não sou racista pois tenho até amigos negros’’ , “ os negros são os mais racistas consigo mesmos’’ , entre outras . Estes pensamentos simplistas ajudam a naturalizar o racismo como se fosse uma mera reclamação sem motivos por parte das vítimas. Quando promovemos a luta antirracista não estamos lutando contra os brancos e sim a favor da população negra. O que se busca não são privilégios e sim garantia de direitos.
Ao contrário do 13 de maio, o Dia da Consciência Negra traz outra perspectiva para dentro da temática?
André Ribeiro: Com certeza, pois quando trazemos ao conhecimento da sociedade o protagonismo negro, sua resiliência e as injustiças sofridas, podemos ajudar a refletir sobre nossa realidade. Algo que percebi durante minha formação acadêmica é que a história dos negros foi praticamente suprimida do ensino nas escolas por muitos anos. Percebemos em livros didáticos que a contribuição do povo negro era descrita como relevante nas artes, no esporte, na cultura, mas pouco se falava que durante cerca 350 anos os escravizados foram a força de trabalho que gerou riquezas no Brasil. Enquanto isso não for reconhecido, não entenderemos por exemplo, por quê num país de maioria preta e parda, este grupo tem os menores salários e vivem em condições de precariedade sob vários aspectos. Nossa história local por exemplo, por muito tempo excluiu a presença e participação dos negros na composição da sociedade local.
Felizmente muitas iniciativas tem buscado mudar esta realidade como as associações, coletivos, grupos culturais, pesquisadores e outros que se empenham em pesquisar, conhecer e divulgar a história dos negros e negras.
Na atualidade pressão social destes grupos, rendeu alguns efeitos positivos como por exemplo a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro brasileira nas escolas e busca entre outros objetivos, corrigir esta negligência por parte do estado brasileiro.
A lei federal 12.519/ 2011, oficializou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra no governo de Dilma Rousseff, garantindo que a data seja lembrada em todo o país.
A Lei nº 12.711/2012 também conhecida como Lei de Cotas, também sob o governo de Dilma Roussef, determina que metade das vagas de instituições de ensino superior públicas devem ser destinadas a candidatos que estudaram os três anos do ensino médio na rede pública. Além disso, estabelece um percentual de cotas para candidatos autodeclarados pretos e pardos.
O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é destinado à reflexões e memória de nosso povo negro. Para além de um dia de comemoração, é uma marca da resistência de um povo que ainda luta por dignidade e direitos.
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