Assunto foi pauta em uma audiência pública realizada ontem na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa

Em audiência pública na tarde desta segunda-feira (6), a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos debateu a privatização do sistema carcerário no RS, por solicitação da deputada Luciana Genro (PSOL) e do deputado Jeferson Fernandes (PT), com a presença de autoridades do meio jurídico, defensores públicos e ativistas dos direitos humanos. A recente concessão a uma empresa privada dos serviços de construção, manutenção e apoio à operação de um novo presídio em Erechim, configurada como a primeira Parceria Público-Privada (PPP) de área prisional no estado, repercutiu nas entidades que atuam no sistema prisional, como a Defensoria Pública, a Pastoral Carcerária e o Conselho Regional de Psicologia, além de outros segmentos, que alertam para a mercantilização das prisões e pedem o cancelamento de recursos públicos,– no caso, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
Conforme o leilão realizado na semana passada, a empresa Soluções Serviços Terceirizados deverá construir e gerenciar a unidade em Erechim, sendo que o custo de vaga/dia disponibilizada e ocupada na unidade prisional será de R$ 233. A unidade terá 1.200 vagas para apenados e a previsão é de 24 meses para a realização da obra. O prazo para a concessão é de 30 anos. O Brasil é o terceiro país do mundo com a maior população carcerária.
Nos encaminhamentos, o colegiado deliberou pela representação ao Ministério Público de Contas do Estado a respeito da concessão do presídio em Erechim, e a criação de Subcomissão para análise do sistema prisional gaúcho. Além disso, por sugestão do Conselho Regional de Psicologia, documento será elaborado e entregue pessoalmente pelas entidades aos dirigentes do BNDES, para cancelar a destinação de recursos públicos para concessões no sistema prisional. A Defensoria Pública do Estado sugeriu que relatórios do Conselho Nacional de Justiça, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, do Ministério de Direitos Humanos, e da Pastoral Carcerária sejam requeridos para amparar a documentação do manifesto a ser elaborado pelas entidades que participaram da audiência pública.
Mercantilização das prisões O deputado Jeferson Fernandes (PT) manifestou preocupação com a concessão, em especial pelo fato de o BNDES financiar as empresas que receberão a concessão do serviço no plano nacional, “além do financiamento a baixo custo, terão benefícios fiscais”, alertando para o risco da entrega desses serviços para a iniciativa privada, uma vez que o encarceramento se tornará fonte de lucro. Disse que experiências no mundo evidenciam equívocos nessas concessões, além de observar que o governador Eduardo Leite desativa as carreiras de estado que trabalham no sistema prisional. Também o deputado Leonel Radde (PT) se manifestou.
A deputada Luciana Genro (PSOL) também externou contrariedade com a privatização dos presídios, “não é solução para os problemas do sistema carcerário, queremos assegurar a garantia dos DHs dos apenados e acreditamos que o encarceramento não pode ser negócio, e muito menos lucrativo”. Ela teme que o encarceramento em massa aumente e alertou que “a situação atual das cadeias preocupa do ponto de vista de assegurar os direitos humanos das pessoas apenadas”, uma vez que o encarceramento atinge de forma mais intensa as pessoas negras e periféricas, que têm dificuldade para acessar os serviços de justiça. “É a indústria do encarceramento”, avisou.
A professora de Direito da Universidade Católica de Pelotas, Christine Russomano Freire, que dirigiu a Escola da SUSEPE, reagiu ao decreto do governo federal que autoriza a privatização do sistema prisional. Ela referiu avaliação do CNJ de que o custo do preso seria em torno de R$ 1.900 mensais “com investimentos mínimos no sistema prisional”, mas para essas unidades privatizadas, o valor do preso é de R$ 3,8 mil por mês, e a concessão de Erechim sairá em torno de R$ 7 mil por preso. Em 30 anos de concessão, com as unidades lotadas, o lucro será em torno de R$ 2,5 bilhões. Ela alertou para o risco de fragilização da carreira dos policiais penais, que representam a garantia dos direitos humanos nesses estabelecimentos.
Christine pesquisou a empresa vencedora no leilão, a Soluções Serviços Terceirizados, e verificou que não tem expertise no sistema prisional, mas no fornecimento de alimentação e alguns serviços terceirizados como limpeza, e apurou que nos anos de 2011, 2017, 2018, e 2019, 2020, 2021, todas as licitações da empresa foram canceladas ou questionadas, sendo todas concentradas no estado de São Paulo, com algumas ramificações no Rio de Janeiro. Pela Defensoria Pública do Estado, a defensora Mariana Py Muniz, que vistoriou cadeias no sistema de concessão como a do Amazonas, onde em 2017 ocorreu massacre de apenados, foi categórica em repudiar o decreto federal, tanto que a entidade assina o documento nacional que aponta os detalhes da privatização. Disse que há perspectiva de ajuizamento de ADI em relação aos decretos federais.
Também observou que a privatização fere a atuação da Defensoria Pública, cuja prerrogativa pelo monopólio da assistência jurídica integral e gratuita é constitucional. “Isso nos preocupa na medida em que diversos locais, como no Amazonas, somente nos últimos quatro anos, desde 2019, a Defensoria passou a atender o sistema prisional. Antes, a empresa responsável pela gestão do presídio contratava a assistência jurídica, cujos profissionais ficavam em autonomia no atendimento dos presos. “Sem tratamento penal e sem assistência jurídica a casa cai”, observando que esse aspecto foi apontado nas experiências que vistoriou pelo país.
Fragilidades na inspeção jurídica e trabalho escravo Mariana Py referiu, ainda, questões jurídicas, como a impossibilidade de delegação da atividade de controle, inspeção, monitoramento, isolamento e para cumprimento de alvarás de soltura, assim como a falta de transparência do processo de concessão em Erechim, “não tivemos acesso ao decreto estadual ou das bases de eventual contrato”. Outra observação foi em relação à exploração do trabalho dos apenados, que poderá violar a Convenção da Organização Internacional do Trabalho, tendo em vista os recentes flagrantes de trabalho escravo no RS. Disse que no Amazonas foi apurado o trabalho de mais de 24 horas dos apenados, sem remuneração, e diversos questionamentos sobre contratos foram encaminhados às entidades privadas que gestionam a prisão naquele estado.
A deputada Fernanda Melchiona (PSOL) explicou que o decreto 11.498 permite as debêntures incentivadas em várias áreas, além do sistema prisional, como na saúde e educação, e áreas florestais. Lembrou que a rebelião em Pedrinhas, no Maranhão, ocorreu em área prisional privatizada. Destacou as dificuldades para fiscalizar e assegurar as garantias de direitos humanos nesses locais. Na Câmara Federal, um Projeto de Decreto Legislativo foi encaminhado para revogar o decreto, e alertou que esta semana poderá ser votado o projeto 2646/2020, que é uma forma de incentivar as debêntures incentivadas, ou seja, isentar do pagamento do IR de 30% das empresas que recebem o aporte dos fundos que gerenciam esses recursos, “é mais um mecanismo financeiro para estimular a privatização conforme está no decreto”.
O presidente do Sindicato dos Policiais Penais do RS, Saulo Felipe Basso dos Santos, além de repudiar a concessão destacou a absurda diferença financeira de um preso para o setor público e o custa definido para a modelagem da PPP. Também referiu o rigor dos atuais concursos para ingressar no sistema prisional, método que assegura a qualidade do perfil desses servidores, enquanto o sistema prisional privado registra rotatividade, baixos salários e processo de qualificação simplificado. Há registro de recrutamentos de funcionários de supermercados, como caixas ou empacotadores. Felipe Basso dos Santos pediu empenho da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e das entidades presentes para enfrentar essa situação.
Racismo e desencarceramento
Codeputada do PSOL de São Paulo, Karina Correia pediu que a luta antirracista esteja incorporada na mobilização contra a privatização das prisões públicas, uma vez que a população negra é maioria (68,2%) dos encarcerados no país. Conforme a lógica de que muitos são presos injustamente, além da questão financeira apontada, que evidencia a mercantilização das prisões, ela entende que é preciso levantar a questão do racismo, “o cárcere é resquício da escravidão”, referindo que a prisão de um homem ou mulher pretos impacta as famílias, além do comprometimento de suas próprias vidas. “Não é coincidência que nos presídios a maioria são pretos, a maioria das crianças que nascem dentro dos presídios são pretas”, além do fato de que a juventude negra que não está presa é assassinada, “então é preciso debate antirracista, sobre a reparação histórica que o país precisa fazer, e para isso é preciso colocar a periferia nos debates”, reivindicou.
A coordenadora da Pastoral Carcerária, Irmã Marta Maria, que também é contra a mercantilização não só do sistema prisional, mas das pessoa, “quando é tornada uma mercadoria, temos que perguntar que tipo de civilização temos ao redor e da qual fazemos parte”, indagou a religiosa. Disse que a Pastoral Religiosa, além da fé, defende a vida das pessoas, e nesse contexto de privação de liberdade, a atuação dos técnicos penais é fundamental, razão pela qual defendeu que esse serviço não seja desmantelado pela privatização. No trabalho de Remissão pela Leitura, que é a sua atuação, tem apoio do grupo de servidores prisionais, “a questão da reintegração social não é trabalho de remediar coisas, mas trabalho prospectivo, olhando para a frente, como cristãos”, lembrando que a Constituição define essa questão como papel do estado.
Outra atuação da Pastoral é no sentido das políticas de desencarceramento, “assim como o Judiciário trabalha com a justiça restaurativa, há ações para desencarcerar, e em caso de privatização, serão aliados (os vencedores) pelo desencarceramento”, questionou Irmã Marta. Ela disse que os números de agosto de 2023 mostram que em Charqueadas, Porto Alegre, Gravatai, Canoas e Sapucaia do Sul têm 12.800 presos.
A psicóloga do Núcleo do Sistema Prisional, Ana Paula de Lima, relatou o trabalho com os presos, que atende em média cinco por dia, nas consultas individuais. Segundo ela, sem a intenção de cometer crimes, essas pessoas vão para as cadeias a partir de um projeto para a juventude popular periférica do país. “Não podemos continuar fazendo de conta que isso não existe, é a extensão do processo de escravização do país, tendo em vista que o Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo. Em outros países, estão fechando as prisões, e aqui, querem prender ainda mais." Ana Paula entende que a privatização das prisões deve ser contida, “vamos criar um monstro que não conseguiremos deter”.
Seguiram-se manifestações de Mário Heingantz, da Defensoria Pública; Rogério Mota, presidente da Associação dos Técnicos Superiores do RS; Rodrigo Tönniges Puggina, Coordenador da Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto da OAB/RS; Lucas Pedrassani, do Conselho Estadual de Direitos Humanos; Leandro Valter, do Conselho Regional de Psicologia; Luciane Engels; André Botafogo, da Pastoral Carcerária e Estela Vasconcelos, da Justiça Restaurativa de Erechim, e Ramiro Goulart, pelo Comitê Estadual Contra a Tortura.
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